O regresso à aldeia dos bisavós é um desafio à memória dos cheiros e dos espaços. Muitas histórias podem ser descobertas à beira de um balcão de tasca. Outras, podem ser reveladoras da própria identidade.

 

Regressar a uma aldeia onde fomos felizes, em crianças, é como tentar coser uma manta de pequenos retalhos de memória. Vale tudo para recuperar histórias e sensações antigas. Um cheiro, uma porta familiar. Ou uma conversa informal, empoleirado num balcão de uma tasca.

Rodolfo Miguel Carrola de Oliveira Faustino tem raízes antigas em Belmonte. Os Carrola. Costuma afirmar, à laia de brincadeira, que, “infelizmente, de judeu”, numa aldeia com uma comunidade judaica pronunciada, apenas tem “o nariz proeminente”.

Conheceu esta Aldeia Histórica com cinco anos de idade. São desse período os primeiros fios de recordações de Belmonte. “Viajávamos para lá muitas vezes para ver os meus bisavós, pais da minha avó favorita e confidente”.

Os seus bisavós eram muito conhecidos na aldeia. Não havia ninguém que não soubesse onde ficava a casa da Belém e do Alípio Carrola. “Ficava junto a uma praceta, na rua que segue para o castelo”, recorda. E continua. “A minha bisavó era dona de balcão. Merceeira de manhã e taberneira ao fim da tarde, dizem-me por lá. Trajava sempre totalmente de negro, com umas vestes largas e um lenço na cabeça. Só anos mais tarde descobri que tinha o cabelo totalmente branco e de um tom incrível. Não sei, mas poderia jurar que teria sido loura em tempos”, confidencia.

Cheiro, esboços e espaços

A bisavó, Belém Carrola, sofria de artrose. Rodolfo Faustino reteve esse pormenor cristalizado. “Lembro-me perfeitamente da sua mão torta da idade, a segurar aquela bengala de madeira castanha e os pés deformados dos calos naqueles sapatos pretos de rede. Não era uma mulher simpática, mas era meiga comigo. Penso até que terei sido a única pessoa”, adianta. Já os copos de tinto que servia, na altura, eram sempre tamanho familiar, contou-lhe um judeu local, com quem trocou uns dedos de conversa neste seu regresso a Belmonte.

“O meu bisavô era reservado. Andava sempre muito bem vestido. De fato. Gostava de castanho e cinza escuro e recordo o chapéu pelas brincadeiras que tinha com ele. Não sorria muito, mas quando eu o fazia rir, mostrava um sorriso largo. Sempre achei que era um bom homem. Tenho ainda uns cadernos de papel manteiga, agrafados, onde me desenhava uns bonecos incríveis”, revela Rodolfo Faustino, arquiteto, desconfiado de que o jeito para o desenho que sempre o acompanhou poderá ter nascido nesses esboços do bisavô Alípio Carrola.

Ao percorrer Belmonte, a pé, vai reconhecendo espaços. “Tenho muito presente a escadaria íngreme para casa dos meus bisavós. Custava-me a subir, mas sofria mesmo era quando tinha de descer. Na casa, o chão de madeira rangia. Ao cimo da escada, do lado esquerdo, entrava na sala e nunca esquecerei a tapeçaria oriental que tínhamos na parede por cima de uma cristaleira. Com um tom de vermelho forte, retratava animais. Elefantes e uns tigres penso eu”, conta. “O cheiro também me ficou gravado na mente. É um cheiro a velho, mas mais refinado”, explica.

Sensação de liberdade

Rodolfo Faustino tem ainda presente a sensação de liberdade que sentia em Belmonte. “A minha mãe deixava-me ir a correr ao velho castelo. Adorava perdê-los de vista e entrar naquelas muralhas que rodeavam um tão vasto e vazio miolo. O castelo era bem diferente daquele que eu conhecia em Pombal, onde vivia. Mais exíguo e mais vertical. Lembro-me que nunca estava lá dentro muito tempo, porque tinha receio que, por algum motivo, se fechassem as portas e eu ficasse lá sozinho”, recorda.

“A minha querida avó Ivone era modista. Tínhamos um amor. Ainda temos. Herdou a mão pesada da mãe e partilhou com as filhas, a rigidez com que cresceu. Adorava voltar a Belmonte para visitar os pais e os seus sítios. Chorava de alegria e partilhei isso com ela, muitas vezes. Belmonte era isto”, conta Rodolfo Faustino. O convívio com os bisavós durou até aos 19 anos. “A Belém foi primeiro e o Alípio achou que isto, sem ela, não tinha muita graça”.

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